VESTIDO CARMIM
Ele...
trazia no rosto um resto de alma,
um gosto da carne entregue a fome do chão
trazia o odor do rosário, a dor do epitáfio, a imagem sépia da desencarnação...
carregava o fardo das incertezas da existência, do desconhecimento do porvir
cumpria seu calvário por caminhos que flutuam sobre mar
(acariciava-lhe a face maquiada de pranto, o vento)
... não havia tempo.
...
trabalhadores, transeuntes, vagabundos, vidas errantes teciam narrativas ao redor de seu ser em transe
de pálpebras abertas e olhos rubros, acalentava seus fantasmas, ninava o invisível presente
(a imagem do defunto edificara labirintos de Dédalos em sua mente)
perguntou-se: anjos nadam?
...
despertou.
compreendeu as sutilezas da beleza da finitude.
aquela criatura imaculada, a bailar nas águas, era o portal entre a vida e a morte
era a prova de que a vida nem sempre se submete às opressões e injustiças do mundo
bailava.
...
Ela...
despiu-se de seu veste líquido e revelou sua "antinudez" ingênua: um vestido de brim carmim
riu... ,
rompeu o cordão umbilical do rio que a pariu
pegou sua existência e seu fardo imposto: uma caixa de bombons...
saiu.
seguiu, sorridente, trapiche acima, imersa em seu vestido molhado de liberdade e de infância... era imune aos infortúnios que lhe impingiram.
e, apesar de tudo, brincava de existir.
chg